Todos já tínhamos visto a sua cara.
A sua história havia já sido contada e escalpelizada e mentalmente anotada por todos. Os factos, os pormenores, os detalhes mais íntimos e mórbidos. E no entanto criou-se nos últimos dias este suspense pelo facto de ele não revelar a sua face. De a sonegar das vistas alheias do mundo que de repente o rodeia e por ele se interessa. Aquela capa arquivadora azul, por detrás da qual ele se refugia nada mais esconde do que a sua própria cobardia, do que a miséria do seu espírito, que, quando descoberto das muralhas de sua casa, quando despido perante as objectivas e as câmaras, não as consegue enfrentar. Por pavor de si próprio.
Mas não criemos ilusões. É um erro chamarmos-lhe monstro. É fácil, conveniente mesmo atribuirmos-lhe tal denominação. É esquecer o monstro que temos dentro de nós. É fácil erguer o dedo indicador e apontar. Puxar da imaginação e sugerir um sem número de penas, punições e castigos para os actos que ele praticou. Esquecemo-nos, ou preferimos não recordar as nossas próprias barbaridades ou os nossos crimes. A nossa ignorância. E o quanto foi essa ignorância responsável por outras tantas barbáries ao longo da História.
O silêncio que nos acompanha, aquela dose de ignorância e indiferença que todos provisionamos e armazenamos na saída de casa a caminho do emprego e da escola, rumo à cidade.
A cidade. Esse lugar agreste e desagradável onde somos confrontados com a pobreza e a solidão e o desespero de outros, humanos como nós, de carne e osso. Pele e cabelos. Talvez sem o cuidado e a atenção com que nós reservamos ao nosso próprio cabelo e à nossa própria pele.
Monstros? Somos todos monstros. Na ignorância com que levamos o nosso dia-a-dia, com as nossas miseráveis e entretidas ninharias, e os nossos problemas. E as nossas angústias.
Problemas? Quais problemas? Já levantaste a cabeça hoje? Já retiraste os olhos das pedras que diariamente amolgas e esmagas e já olhaste em teu redor? Diz-me tu, o que fizeste hoje por outra pessoa. Por alguém que não conheces e que não podes influenciar por acção directa dessa tua caridade que nada mais é do que hipocrisia e soberba. Sim. Que acção – pergunto eu, fizeste tu hoje a alguém teu semelhante, da qual nada esperes em retorno. Da qual não fiques a contar o favor. A pesar pela retribuição. Hmmm?
Amanhã, quando o sol raiar e chegar o momento de uma vez mais partires rumo à cidade não te esqueças da capa arquivadora. Azul ou de outra cor que te agrade.
Amanhã, por um dia que seja, mostra a tua vergonha e a tua indiferença pelo mundo que te rodeia.
Amanhã o monstro serás tu.