março 13, 2009

o Mal

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"Há pessoas cujos móbiles não merecem a indagação, ainda que as tenham levado a cometer actos terríveis ou precisamente por isso. Isto, bem sei, vai totalmente contra a tendência actual. Hoje em dia toda gente se interroga sobre o que leva um assassino reiterado ou maciço a assassinar maciça ou reiteradamente, ou um coleccionador de violações a aumentar continuamente a sua colecção, um terrorista a desprezar todas as vidas em nome de alguma primitiva causa e acabar com o maior número possível delas, um tirano a tiranizar sem limites, a um torturador a torturar sem limites, quer o faça burocrática, quer sadicamente. Há uma obsessão por compreender o odioso, no fundo há uma malsã fascinação por isso, e com isto faz-se um imenso favor aos odiosos. Eu não compartilho essa curiosidade infinita do nosso tempo pelo que em nenhum caso tem justificação, ainda que se lhe encontrem mil explicações diferentes, psicológicas, sociológicas, sociológicas, biográficas, religiosas, históricas, culturais, patrióticas, politicas, idiossincráticas, económicas, antropológicas, vem a dar no mesmo. Eu não posso perder o meu tempo a indagar o que é mau e pernicioso, o seu interesse é sempre mediano no melhor dos casos e amiúde nulo, garanto-lhe, vi muita coisa. O mal costuma ser simples, embora às vezes não tão simples, se fores capaz de apreciar o cambiante. Mas há indagações que mancham, e até as há que contagiam sem dar nada de valioso em troca. Hoje existe um gosto de se expor ao mais baixo e vil, ao monstruoso e ao aberrante , por assomar a contemplar o infra-humano e por o roçar como se tivesse prestigio ou graça e maior importância que os cem mil conflitos que nos assediam sem cair nisso. Há nesta atitude um elemento de soberba, também, mais um: mergulha na anomalia, no repugnante e mesquinho como se a norma fosse a do respeito e da generosidade e da rectidão e houvesse que analisar microscopicamente tudo quanto sai dela: como se a má-fé e a traição, a malquerença e a vontade de fazer mal não fizessem parte dessa norma e fossem coisas excepcionais, e merecessem por isso todos os nossos desvelos e a nossa atenção. E não é assim. Tudo isso faz parte da norma e não tem mistério por aí além, não maior que a boa fé. Mas esta época está devota à tolice, ao obvio e ao supérfluo e assim nos corre a vida. As coisas deviam ser antes ao contrário: há acções tão abomináveis ou tão desprezíveis que a sua mera comissão devia anular qualquer curiosidade possível pelos que as cometem, e não criá-la nem suscitá-la, como tão imbecilmente sucede hoje."

Javier Marías, O teu rosto amanha - Febre e Lança". Ed Caminho. 2007

Observando a atenção mediática que normalmente rodeia actos como o recente tiroteio em Estugarda, e discutindo a natureza e móbil de tais actos com outras pessoas, recordo-me com frequência deste trecho do primeiro livro da trilogia de Javier Marias, onde o personagem Jacques Deza questiona e desconstrói o hábito que criou rotina neste nosso tempo de tentar, com o uso dos mais variados especialistas e teorias, explicar o porquê do mal. Como se ele, o Mal, não fosse elemento inerente à própria essência e formulação do ser humano. Pergunto-me se não vivemos hoje n’A Vila, o filme de M. Night Shyamalan, onde uma comunidade isolada do resto do mundo cria os seus próprios monstros por forma a manter uma suposta normalidade e status social e inter-relacional.

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